Três pontos. Reticencias e as expressões subentendidas. Aquele abraço e o teu cheiro entranhado em cada fio de cabelo. Em cima da mesa ficaram as chaves. Daquela casa de mil portas. Daquela viagem só para um. Na mesa de cabeceira. Ao lado dos brincos que se tiraram porque magoam ao dormir. No peito. Lembraste de te ter esquecido? Deve ter sido quando o sono deixou cair as forças. Depois daquele último cigarro. Com os olhos de sono que gravavam aquela silhueta curvilinea. Entre abertos. Não ficou um bilhete. Nem uma rosa na ponta da cama. Uma mensagem. Ficaram almofadas espalhadas e lençóis desalinhados. Ficou aquele perfume. Aquela camisola esquecida. Para lembrar que o hoje foi só de passagem. Que amanha as memórias são frágeis. E que o que se sente, muda a cada segundo. A cada chance ou sussurro ao ouvido. A cada carinho despercebido ou a cada lembrança de outra hora. A cada expressão transparente de um sorriso esboçado por prazer. Ou por força. A cada toque. A cada seres tu. A cada sentir meu. E olha que eu já vi coisas começarem por bem menos. E esta pode começar para ser a mais bonita de todas.
Ela não precisa das tuas flores. Provavelmente nem reparou no nome do restaurante onde comeram qualquer coisa. Nem na marca do café para dois. Ela nem se lembrou onde é que a tinhas prometido levar. Só se lembrou que tinhas prometido estar. Provavelmente nunca tirou segundas palavras. Das tuas palavras. Nem se quis iludir. Lembrou-se de pensar que nem todos pensam igual. Que tu pensavas uma coisa que não era. E que por isso estavas a acertar ao lado do que era. Lembrou-se de não pensar nisso. Porque não queria adivinhar. E, portanto não esperes nem adivinhes. Não prevejas momentos. Não despertes reacções. Não provoques atitudes. Senta-te e espera para ver. As pessoas não são iguais. Ela gosta do café em chávena quente e de conversar. Não tenta nada de impossÃvel. Não quer nada que não exista. Só simples e transparente. Natural e espontâneo. Ela pode até nem querer um bom jantar ou um passeio fabuloso. Às vezes uma lareira e uma manta para dois. Uma praia deserta e o sal no corpo. Uma mensagem de bom dia. Um adormecer diferente. Não adivinhes. Ela não são todas. Tu não és igual. E podes perder uma boa chance. De para ela, ser diferente.
Quase que são mais as vezes em que faltam palavras. Mas vamos fazer de conta que até tenho essas palavras. Essas. Que explicam o que se sente. Vamos fazer de conta que essas cartas de amor existem e esses romances eternizados pelo tempo não são só livros. Que um olhar pode dizer mais que um falar. Esse falar que não sei. Esse partilhar que temo. Esse aproximar que não tento. Esse cair que não quero. Esse pensamento que afasto. Só fingir. Fingir que vens. Que sentes e vais ficando. Que nao me deixas sentir. Saudades. Vamos fingir que até sabia desenhar e podia mostrar. Vamos fingir que podiamos trocar. Enterlaçar. As pernas por baixo dos lençóis. Os dedos por entre as mãos. Que podiamos até trocar. Trocar as camisolas e o cheiro dos perfumes deslavados entre beijos e entregas. O real é tão mais. Por isso finge. Finge que o acordar é melhor. Que aquela dia nasceu maior. Que a cama ainda tem o teu cheiro ou que o resto do meu batom ficou naquele copo sobre a mesa de cabeceira. Finge que foste capaz de guardar uma imagem tamanhamente real do meu sorriso parvo ou do ar rabugento. Com tamanho pormenor. Que no espelho do teu mural interno, soubeste fazer-me. Refazer-me. Ao teu jeito e pensar. Vamos fazer de conta que ninguém se zangou. Que o tempo não passou por nós. Façamos de conta que tudo está bem. Que estás bem. Que temos o tempo de um Mundo. Que não temos pressa de nada. Que eu vou estar aqui. Que vou saber esperar. E com tanto fingir, talvez um dia tudo seja assim.
E quando a noite se instala sente-se o cheiro e o estar. Sente-se. Sente-se o cheiro das tuas mãos, o teu cheiro, naquela camisola três números acima com que se adormeceu. Por isso abre a porta, deixa-me ficar. Ou mesmo sem ficar, deixa-me estar. Promete coisas que não vais cumprir. Fica, acordado, à espera de um amanhã incerto. Não vivas na sombra. Na sombra de incertezas e saberes. Deixa-te ficar mesmo sem saber. Deixa cair a noite e os lençóis sobre a pele fria. Deixa cair o desejo de olhos fechados e abraços apertados. Deixa sem pensar. Podes só cá estar uma vez, posso partir amanhã. Desfaz aquela maquilhagem sem falhas, aquele batom sem desvios, aquele vestido certo e aquele cabelo. Deixa de ser assim. Deixa que caia a noite e ainda lá estejas. Eu. Tu. Deixa que possa chegar à cozinha primeiro que tu. Beber os teus iogurtes. Chatear-te. Fazer-te cócegas. Deixa. Deixa que possa sorrir-te por cima do ombro enquanto de costas, me vês vestir. Deixa que possa subtilmente odiar. Odiavelmente querer. Deixa que possa saber que posso. Deixa que possa ficar e ser. Deixa. E quando deixares, deixa um espaço. Um espaço para que não fique sozinha. Um espaço para mais que um. Não necessariamente dois. Um espaço onde juntos, caibam dois, ou um. Mas promete, que quando deixares, deixas. Deixas mesmo.
Já te esqueces da chave, porque a tua casa mudou. Nao te preoucupas com o telefone porque está tudo ali ao lado. Estão ali, lado a lado. As canetas ficaram na secretária antiga, que agora mal usas para reescrever em papéis velhos. Agora escreves. Contas de novo e para futuro. Aquela és tu. Sais de casa com mau olhar para o guarda roupa. O cabelo desgrenhado e as camisolas tamanho xxl. Não é importante. As grandes despedidas ou um acenar. As grandes chegadas ou um beijo na testa. Adormeces ao som do que te lembras e acordas com sons que não esqueces. Não foi aquela palavra ou muito menos aquele verso. Foi só um momento. Um carinho ou um desejo de. Um olhar de soslaio ou um sorriso mordido.
Já não se vê relógios, o tempo é todo e inteiro. Cabe na mão bem fechada da noite ou do ultimo cigarro que nunca acaba. Num espaço onde cabem dois. Tiram-se os sapatos antes de entrar, segredo e nada de barulho. A mesma entrada e o mesmo abajour preto e branco. As chaves ficaram penduradas. Mais uma vez, mas não foi esquecimento. Não se entrou no sitio errado. Não há lugares seguros. Nem abraços sem fim. E depois da fuga, depois, volta-se sempre a casa.
Ana Teixeira
Já não se vê relógios, o tempo é todo e inteiro. Cabe na mão bem fechada da noite ou do ultimo cigarro que nunca acaba. Num espaço onde cabem dois. Tiram-se os sapatos antes de entrar, segredo e nada de barulho. A mesma entrada e o mesmo abajour preto e branco. As chaves ficaram penduradas. Mais uma vez, mas não foi esquecimento. Não se entrou no sitio errado. Não há lugares seguros. Nem abraços sem fim. E depois da fuga, depois, volta-se sempre a casa.
Ana Teixeira
Ela nunca vai ser para ti uma coisa que já tenhas tido. Uma tem os cabelos longos. Ela tem médio. Partilham só os olhos castanhos. Os corpos unem, numa junção hipotéticamente quase perfeita, mas são diferentes. Como as sensações. Uma vai contigo ao cinema e imaginam um filme que julgam viver. Dão as mãos e trocam juras. Este e aquele amor. Ela conta um filme quase perverso. Vive um clima que nunca prevê e faz as juras de nunca desaparecer. De nunca estar longe ou ir viver mais logo. Uma revira os olhos quando discutem, promete que se vai embora e que nunca mais te quer ver. Dá um estalo. Bate com o punho na mesa e nem sabe da missa a metade. Ela não discute. Conversa contigo e promete, apesar de tudo, ficar. Aponta-te os defeitos e a forma absurdamente racional como lidas com tudo. Diz que foi a última vez e que a tua escolha impera. Mas nunca parte. Fica sempre para ver. Invisivelmente ao teu lado, invariavelmente ao teu redor, invencivelmente ao teu alcançe. Uma publica ao mundo o teu que é seu e vosso amor. O incontestavel falso carinho. O arrogante gostar e querer porque faz bem e parece bem. Não te conhece. Não te sabe os passos, mas vai estar inesgotavelmente contigo, sem nunca te por em causa, sem nunca duvidar. Ela já duvidou do mundo por ti, já pensou tantas e tantas vezes na sorte. E no azar. No querer que não vai deixar de ser nunca. Na tua viciosa virtude. Sobre todos os pecados que conscientemente esconde, de ti, por ti. Uma é aquilo que julgas querer e construir idealmente para sempre. Ela é aquilo que talvez não saibas que sempre quiseste mas que nunca tiveste coragem para ter. Porque uma, na ingenuidade de ser, pensa que conhece. Outros acham que te conhecem. Mas ela, ela conhece-te. Ela não vai ser a que tu apresentas aos teus pais, não vai ser a que os teus amigos conhecem. Não vai ser a mais bonita história de amor, não vai ter direito a fotos nem demonstrações de afecto. Ela provavelmente não vai ficar contigo, nunca. É o teu golpe de sorte eterna. E tu largas. E ela sabe de tudo isso e mais um pouco. E mesmo assim, vai sempre estar por ali. E isso é talvez uma das mais bonitas formas de querer. Não há comparação no querer e ela vai sempre ser diferente. Tão diferente, que nunca nada será igual.
Ana Teixeira
Ana Teixeira
Mas nem sempre foi assim. Nem sequer foi sempre que fumei o cigarro e te deixei a ponta. Nem sempre partilhei nem quis dar o que é meu. E sem contar os passos e os intervalos compassados por respirações reticentes, fui deixando cair. Tirei a máscara e do pó fiz um fumo estonteante que me deixou sem ver. Até a janela e aquele recanto. Ficámos num escuro impossÃvel de se ver. E mesmo nesse escuro pudemos saber que, impossÃvel, era não ficar. Sem consequências nem estalos. Sem se punir no segredo ou na inconfidência. Nem sempre me despi. E aÃ, até de ti e de mim e do que fez ser nós e afinal, ser nada. Foi um caminho sem estrada e uma morte na praia com pouco que contar. No fundo, nem há culpa. Não sei se fui eu que não te soube ler ou se foste tu que simplesmente vieste sem hora marcada para ter. Sem destino nem rumo, nem uma sombra de fumo. Nem sempre soube se querer era o certo. Sentava-me uma e outra vez, sem conseguir escrever, e cada palavra parecia em coma. Depois disso, um primeiro suspiro sem nexo. Apanhei o último comboio das duas que nem sei para onde vai. Nem sequer se volta. Quando nem como. Entrei. Só como quem nem sequer sabe ao que vai. Ao primeiro segundo consegui saber. Esperava uma e outra vez. Sabia que já não era igual. Mas queria estar ali sem perguntar ou saber porquê. Não havia nada que soubesse não fazer. Era mesmo assim. Tinha largado a pele e deixado demais. E isso, já não me incomodava. Pelo contrário, até acho que gostava.
Ana Teixeira
Ana Teixeira