A casa

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Deixei. Deixámos. Aquela mesma casa de sempre. De paredes frágeis e telhados de vidro. Quando lá entro, esporadicamente e porque me visito, sinto. Sinto o chão gasto pelas horas de sempre. Sento-me e sinto o frio. Já não há uma cadeira mal almofadada. Nem o sofá rasgado que servia de cama. Nem as molas denunciadoras de um colchão quebrado. Nem a manta para dois, com rasgões de incertezas e buracos de tempo. A água congelou nos canos e as contas continuam na mesa improvisada de cabeceira. Por pagar. Sem luz. Já nem aquele candeeiro velho ao fundo do corredor. Fusiveis queimados pela falta e ausência. As cortinas estão sujas. Têm marcas de cigarros de noites perdidas. Nódoas de palavras lançadas junto com beatas. Negros. Tão negras. As paredes. Estão de um branco sujo com mãos marcadas e corações desbotados. Prontas para ficar ou servirem de catálogo a uma vulgar história de amor. Ocasionalmente sente-se uma brisa quente. As mesmas velas. As pontas de fósforos queimados. Ainda vive, aquela secretária. O candelabro e o cinzeiro. O meu papel. A tua caneta. A nossa história. Confesso que me sento ao meio da sala sem mesa de centro. No chão sem tapete. Nas ripas de madeira gasta. Sinto a dureza na pele. Passa as calças e qualquer casaco quente. É um gelo estranho no sentar. No mais uma vez sentar. Sentir. Esperar. Saber. Aprender a ouvir o silêncio e as presenças distantes que vagueiam pelos cantos da casa. Faz-se noite. Não corre o sabor da comida morna. Nem dos fósforos queimados. Nem do intervalo. Nem das roupas pelo chão. Nem da tua camisa perfumada. Nem da humidade que incomoda. Nem do frio que aquece. Nem do teu cabelo desgrenhado e aquela manta grená. Nem do teu toque subtil de quem sente. De quem não quer nem pode sentir. Como as luzes que lá estão mas sem interruptores que liguem. Há umas cinzas fugidas de cinzeiros gretados. E há um isqueiro caído no chão. Uma vela de pavio já curto. Uma porta que range e um gato vadio à entrada. Olha-me com ar de desdém e inveja. Recebe-me sempre que chego. Arrasta-se quando parto. Cruzo-me com a vizinha.. que casa tão fria . Sim, não era preciso muito para se ter tudo e o pouco que havia, aquecia.

Ana Teixeira

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