Ainda pensei em escrever-te uma carta. Depois pensei que ia ter um toque de despedida que não queria, por saber que na verdade, nunca quis largar-te a mão. Não fui capaz de fazer o caminho sob aquelas pedras gastas dos tempos aureos de loucura e ilusão. Iludi-me demais e fui-me deixando ir ao sabor da brisa. Não pensei no fim e na tua ausência. Nas músicas cravadas como agulhas. Nas dores latejantes das lembraças de um tempo perdido. Também nunca pensei que voltasses, confesso. Tinha-te como miragem. Reflectias-te num qualquer espelho, sempre atrás de mim, como marca convicta da minha falta de sensatez momentanea. Secalhar hoje seria diferente. Secalhar o desejo far-me-ia para sempre tua, mais do que o sabor tentador de me possuires como nunca antes havias feito. Já amachuquei mil papéis. Todos sujos com as minhas fracas palavras que nunca chegarão para te contar sensações e tremores. Medos e saberes. Idas e voltas. Impulsos e controlos. Sabes lá a minha, que era tua, nossa história. Sempre vivemos vidas paralelas. Para lá de nós e dos nossos pressupostos sentimentos. Para lá dos outros e de tantos rodeios. Para lá das gavetas que guardam chaves unicas de caixas ferrujentas. Que não queremos abrir. Que quisemos tanto fechar. Olho para o meu relógio de parede e vejo como o tempo passou. Como nunca nos deixámos ficar presos aqueles ponteiros, ditadores daquele tempo limitado e irrepetivel. É bom saber que as vezes ainda ai estás e sentes falta do meu calor. Procuras o cheiro do meu perfume. O aroma do meu cabelo ainda molhado do banho, com aquelas ondas que tanto contrastam com as linhas rectas e repetidas habituais. O toque das minhas mãos. O sabor dos teus lábios. O estar ali só por estar. O ficar. Apenas por ficar. Sem perguntas nem respostas. Expectativas ou perguntas. No mesmo silêncio sem amanhã. Sem pensar. Sem tocar o céu ou o inferno. A tranquilidade e a leveza. Como vês, não era possivel escrever uma carta. Perder-se-iam por entre as linhas, o calor das palavras e o sabor das letras. Das tuas letras que eram as minhas palavras. Das linhas que eram as tuas, nossas, histórias.
Senta-te comigo e deixa que troquemos umas palavras sinceras. Não te quero pedir que fiques para sempre e muito menos que prometas impossiveis. Sei que não tens tempo e que não podes que te vejam. Sei que não é por não gostares ou não quereres mas porque o tempo assim nos fez, sempre desconhecidos e eternos segredos. Deixámos aquele nosso recanto de desejo e impossivel para saber o que era o conforto de uma casa quente. Saber como era acordar e ter torradas, chegar e ter café, deitar e sentir o calor da lareira, acender e alguém apagar porque no escuro é melhor e mais intenso. O guarda roupa duplicou de tamanho e há mais gavetas… estranho, antigamente uma gaveta chegava para dois. Mas isso era quando o singular encaixava no plural. Quando um copo chegava para dois, uma manta cobria o mesmo frio e uma garrafa aquecia dois corpos gelados. E não que agora a playlist seja diferente e as músicas tenham mudado. Não que eu não vista a mesma camisola, que parecia de noite, com rendas dobradas com que deliciosamente implicavas. Agora só não estás lá para a ver. E podes pensar que ainda somos algo parecidos. Mas não somos. Talvez nos encontremos na forma de ver o mundo de uma esquina suja pelos pós dos que passam sem se verem mas há muito mais que saber, muito mais para além disso. Há muito mais para além de nós. E mesmo assim estamos sempre lá. A chuva e as folhas secas caidas à minha que era nossa, porta. O nevoeiro com o cachecol enrolado ao pescoço a fugir da vista e nós de olhos entre abertos pela dor, no sol que erradia pela janela e se reflecte naquele espelho, o da nossa imagem. E o silêncio. Esse com que nunca deixaste os nossos lugares. Agora só não sabes o que escrevo em traços largos nos caminhos estreitos da alma. Não sabes quantas vezes mudo a água das flores que me deste ou sequer se ainda as tenho naquela jarra de conquistas capazes de esgotar. Podes até saber a cor do vestido que te tirava o norte, podes saber como era bom o cabelo sem nós adormecido no teu peito mas o que guardo nas gavetas só para um, o que bebo no meu copo de cristal ou a amargura do meu café, isso não podes saber. Foste sem destino e não deixaste cartas. De vez em quando apareces num rasto de avião, mas como sei se vens, se me habituei a que fosses?